Se o medicamento do câncer falhar, a farmacêutica devolve o dinheiro

O Programa de Saúde Baseado em Valor do A.C.Camargo cria parcerias com a indústria farmacêutica para garantir mais efetividade no tratamento oncológico e sustentabilidade ao sistema de saúde

Se o medicamento falhar, a farmacêutica devolve o dinheiro à fonte pagadora. Essa afirmação causa estranheza em qualquer pessoa. Se a droga, embora prescrita de forma correta e administrada dentro dos protocolos, não entregar o resultado esperado para aquele paciente, naquele momento, nada mais justo do que reembolsar a fonte pagadora. Faz sentido. Ainda mais para os gestores de planos de saúde, que pagam por medicamentos de alto custo para garantir um desfecho clínico positivo.

Não é pegadinha. Trata-se de um acordo de compartilhamento de risco firmado entre o A.C.Camargo Cancer Center e farmacêuticas como Roche e Johnson & Johnson, que visa tornar a gestão do tratamento oncológico mais eficiente, sustentável e centrada no paciente. O modelo, premiado internacionalmente, prevê auditoria rigorosa dos casos e a devolução dos recursos quando for comprovada falha terapêutica, com o valor retornando às operadoras de saúde que financiaram o medicamento.

As primeiras a receberem a boa notícia de retorno do custo foram a Saúde Petrobras e a Bradesco Saúde. “Receber uma ligação do hospital dizendo que querem devolver dinheiro foi inusitado. Mas mostra que há seriedade e compromisso em construir um novo modelo de cuidado”, disse o representante da Saúde Petrobras, Manoel Cardoso. “O desafio agora é escalar isso. Como levar essa lógica para todo o ecossistema?”

Reduzir o custo da saúde por meio de uma gestão eficiente, sem desperdícios e com controle de fraudes é um ponto crucial para que o valor do plano de saúde se torne mais acessível à população. Hoje, apenas 25% dos brasileiros têm algum tipo de plano de saúde. Em dezembro de 2024, 52,21 milhões de brasileiros tinham plano de saúde, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Ao aumentar a participação da população com planos privados, o Sistema Único de Saúde (SUS) fica menos sobrecarregado e os recursos financeiros podem ser melhor distribuídos entre a camada social que mais necessita da assistência do governo.

Esses dois casos foram apresentados durante o III Encontro de Gestão da Sinistralidade e Valor em Oncologia, realizado em março na Unidade Itaim da instituição, com a presença de 90% dos principais gestores de saúde das fontes pagadoras de tratamentos aos beneficiários. Durante o evento, foram apresentados dois casos que mostram como o compartilhamento de risco funciona na prática: um de câncer de pulmão e outro de fígado.

Em ambos os casos, os pacientes e a instituição de saúde seguiram rigidamente os protocolos indicados. Ainda assim, houve progressão da doença antes do tempo previsto. Após auditoria da farmacêutica, que confirmou o uso correto da medicação, o valor das imunoterapias administradas foi restituído e repassado às operadoras envolvidas.

“O A.C.Camargo é pioneiro hoje em apoio à gestão de risco. Firmamos com a Roche um acordo em que, se o medicamento não cumprir o que está na bula e todos os critérios forem atendidos, a empresa assume essa falha e devolve o valor”, afirmou Rafael Ielpo, diretor comercial e de marketing do A.C.Camargo. “O que temos é um exemplo prático de como buscar a sustentabilidade do sistema. Pode até causar estranheza, mas é real: nós devolvemos o dinheiro à fonte pagadora. Estamos falando de um modelo baseado em confiança, evidência clínica e compromisso com a sustentabilidade.”

A ação é resultado de três anos de trabalho do Escritório de Valor da instituição, que reúne mais de 30 profissionais dedicados a revisar protocolos clínicos, otimizar recursos e gerar dados de impacto real para o ecossistema da saúde. “É um pilar estratégico nosso. Nosso foco está em desenvolver novas modalidades de cuidado e construir pontes com todos os agentes do setor. O paciente está no centro, mas é preciso redesenhar o relacionamento entre operadoras, indústria e prestadores. O modelo tradicional não se sustenta mais.”

“Estamos acostumados a ouvir sobre compartilhamento de risco, mas ver isso acontecer na prática é transformador. Nos dois casos, a farmacêutica auditou, concluiu que houve falha terapêutica e devolveu os recursos. Isso é um marco para o setor”, ressaltou Ielpo. “Poderíamos simplesmente reter esse valor, mas não seria ético. O compromisso é com quem financiou o tratamento.”

A médica Dra. Aline Chibana, gerente do Escritório de Valor do A.C.Camargo, destacou que o acordo com a Roche foi o primeiro contrato de compartilhamento de risco firmado no Brasil na saúde suplementar. “No início, chamamos as operadoras para participar, mas nenhuma aderiu. Era algo muito novo, conceitual. Decidimos seguir com a Roche mesmo assim. E hoje temos um aditivo específico para carcinoma de pulmão de células não pequenas, ampliando a fase de avaliação do tratamento de seis para nove ciclos.”

A experiência gerou reconhecimento internacional. O acordo com a Roche foi premiado fora do Brasil como uma das mais inovadoras estratégias de gestão em oncologia. “É uma construção de longo prazo. Leva tempo, exige maturidade do mercado. Algumas negociações com farmacêuticas podem levar até dois anos. Mas estamos convencidos de que este é o caminho”, reforçou Aline.

O oncologista Daniel Goldstein, diretor do Centro de Economia da Saúde do Davidoff Cancer Center, em Israel, veio ao Brasil especialmente para acompanhar a experiência do A.C.Camargo e oferecer consultoria à instituição. “O que está sendo feito aqui é raro, mesmo em termos internacionais. A proposta do Escritório de Valor é ousada e absolutamente necessária. A sustentabilidade da oncologia depende de estratégias como essa.”

Goldstein também é um dos idealizadores do movimento Common Sense Oncology (CSO), que defende uma abordagem mais racional no tratamento oncológico, baseada em evidências, custo-efetividade e equidade. “Começamos esse movimento no Canadá e hoje ele se espalha pelo mundo. O princípio é simples: precisamos fazer mais com menos, sem perder de vista o que realmente importa para o paciente.”

Para o especialista, um dos maiores desafios é manter a confiança da sociedade. “Quando dizemos que vamos usar doses menores ou mudar abordagens, a primeira reação é de desconfiança. Será que estão oferecendo o melhor? Por isso, precisamos comunicar com clareza. Mostrar que é o melhor tratamento possível, com os recursos disponíveis. A confiança é a base de tudo.”

A líder da oncologia clínica do A.C.Camargo, Dra. Rachel Riechelmann, reforçou essa visão ao apresentar estudos recentes que embasam a redução segura de doses de medicamentos como lenvatinibe e everolimo. “No caso do lenvatinibe, usamos 8 mg ao invés dos 24 mg recomendados, com o mesmo efeito e menos toxicidade. O estudo Evenet, ainda em curso, mostra que 5 mg de everolimo também são eficazes como 10 mg, mas com metade dos efeitos colaterais.” Esses dados embasam decisões clínicas mais sustentáveis e mais humanas, segundo Rachel. “Menos toxicidade significa menos internações, menos complicações e maior qualidade de vida para o paciente. Mas precisamos que operadoras e reguladores entendam isso e estejam abertos a discutir evidências.”

Para Rafael Ielpo, é uma construção em curso. “Estamos abertos ao diálogo com todas as operadoras. Queremos que nos visitem, conheçam o Escritório de Valor, vejam de perto o que estamos fazendo. Nossa base de dados tem mais de sete décadas. Podemos e queremos ser referência, mas é preciso colaboração.” Ele destacou que o Escritório atua em parceria com todas as áreas da instituição e que os dados são usados não apenas para acordos comerciais, mas também para melhorar o cuidado. “Quando a gente ajusta uma dose, isso está no prontuário médico. É prescrição. Mas do ponto de vista comercial, muitas vezes ainda compramos a dose cheia e fracionamos. Estamos buscando alternativas também nesse sentido.”

A aproximação com as operadoras foi reforçada durante o encontro, com representantes das operadoras de saúde manifestando interesse em aprofundar a colaboração. “Vocês têm a jornada completa do paciente, algo raro. Isso permite análises mais ricas. Vamos sim seguir acompanhando de perto o que estão fazendo”, comentou Ana Gaudêncio, gerente de projetos estratégicos na SulAmérica. Já a representante da Cassi, do Banco do Brasil, destacou a importância da decisão colegiada na escolha terapêutica, especialmente em casos com muitas comorbidades.

“O que o A.C.Camargo está fazendo ainda é exceção. Mas pode se tornar a regra. Movimentos como o Common Sense Oncology existem para apoiar iniciativas assim, que colocam o paciente no centro e promovem um uso mais racional dos recursos”, enfatizou Daniel Goldstein, reforçando o importante papel do Brasil nessa transformação do relacionamento entre os stakeholders da saúde privada.

No encerramento, o CEO do A.C.Camargo, Victor Piana, resumiu o espírito da instituição. “Acho que todos aqui sentem que dá para fazer mais e melhor. E mais rápido. Estamos aqui para isso. Não queremos ser apenas uma instituição de saúde. Somos uma linha de cuidado em câncer, que começa muito antes da internação e vai muito além dela. Nosso compromisso é com o que é melhor para o paciente, no menor custo possível. E queremos seguir esse caminho de mãos dadas com todos vocês.”

Denise Bueno
Denise Buenohttp://www.sonhoseguro.com.br/
Denise Bueno sempre atuou na área de jornalismo econômico. Desde agosto de 2008 atua como jornalista freelancer, escrevendo matérias sobre finanças para cadernos especiais produzidos pelo jornal Valor Econômico, bem como para revistas como Época, Veja, Você S/A, Valor Financeiro, Valor 1000, Fiesp, ACSP, Revista de Seguros (CNSeg) entre outras publicações. É colunista do InfoMoney e do SindSeg-SP. Foi articulista da Revista Apólice. Escreveu artigos diariamente sobre seguros, resseguros, previdência e capitalização entre 1992 até agosto de 2008 para o jornal econômico Gazeta Mercantil. Recebeu, por 12 vezes, o prêmio de melhor jornalista de seguro em concursos diversos do setor e da grande mídia.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Ouça nosso podcast

ARTIGOS RELACIONADOS