Pagar ou não o seguro de lucros cessantes em decorrência da pandemia?

Eis a questão que tem dominado discussões entre segurados e advogados no mundo todo e também no Brasil

Pagar ou não pagar indenização de lucros cessantes por conta da pandemia? Eis a questão que tem tirado o sono de segurados e advogados. Desde que o FCA (Financial Conduct Authority), órgão regulador do setor de seguros no Reino Unido, iniciou em junho deste ano demanda perante as Cortes do Reino Unido visando obter determinação judicial sobre certas questões relacionadas ao seguro de lucros cessantes no contexto da pandemia Covid-19 (o “FCA Test Case”), as discussões sobre as tendencias do que vai influenciar os pagamentos no Brasil não cessam. 

Ricardo Lewandowski e Pablo Hanna, advogados da Clyde & Co, é importante deixar claro que o objeto da discussão no FCA Test Case está limitado a determinadas coberturas adicionais que foram especificamente contratadas pelos segurados e não dependem da ocorrência de dano material (“property damage”). São as chamadas “non-damage covers”.[1]

Ou seja, a cobertura básica de lucros cessantes, que tem como requisito a ocorrência de dano material, não é objeto do FCA Test Case. Não só a manifestação inicial do FCA,[2] como também a decisão judicial divulgada no dia 15.09.2020,[3] expressamente registram esse importante aspecto.

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Nesse sentido, a opção do FCA de não incluir a cobertura básica de lucros cessantes no objeto do FCA Test Case demonstra um reconhecimento do órgão regulador, ao menos implícito, de que será muito difícil defender que o requisito de dano material (“property damage”) estaria caracterizado nas hipóteses em que a interrupção de negócios do segurado foi causada pela pandemia Covid-19. 

No Brasil, tanto a cobertura básica, como também as coberturas adicionais, usualmente exigem a caracterização de dano material. E a existência de coberturas ‘non-damage’ tratadas no FCA Test Case é rara nas apólices brasileiras. É preciso, portanto, ter muita cautela ao mencionar a decisão no FCA Test Case como um precedente para a realidade brasileiravalendo ressalvar ainda que o FCA e a maioria das seguradoras envolvidas manifestaram a intenção de recorrer diretamente à Suprema Corte.

O comunicado oficial do FCA emitido em 01.05.2020, antes do início do FCA Test Case, parece corroborar o entendimento de que não poderia ser acionada a cobertura securitária que exige que o lucro cessante seja decorrente de dano material: “As stated in our Dear CEO letter of 15 April, our view is that most SME insurance policies are focused on property damage (and only have basic cover for BI as a consequence of property damage) so, at least in the majority of cases, insurers are unlikely to be obliged to pay out in relation to the coronavirus pandemic.”[4]

O objeto do FCA Test Case é, portanto, especificamente delimitado para determinadas coberturas adicionais que não exigem dano material (“non-damage covers”) e é nesse contexto que a decisão proferida em 15.09.2020 deve ser avaliada pelo mercado segurador brasileiro, sempre levando em conta também as especificidades locais e o clausulado das coberturas contratadas nas apólices aqui comercializadas. 

Já Pedro Ivo Mello, sócio Raphael Miranda Advogados, discorda. “No Brasil é totalmente diferente”. De fato esse é o tema tratado na ação da FCA, mas o conceito de dano material no direito daquele país é distinto do conceito de dano material do direito brasileiro. Logo, a conclusão deles parte de uma premissa equivocada, na minha opinião. 

Mello argumenta que o conceito de “property damage” não pode ser traduzido, de forma literal, para o português e para o direito brasileiro. No Reino Unido prevalece o entendimento (há posições contrárias, destaco) de que o “property damage” seria uma dano físico a um bem do segurado, i.e., dano que atinja as propriedades físicas/corpóreas de um determinado ativo do segurado.

Algumas coberturas adicionais para perturbação ou interrupção no giro de negócios dos Segurados (leia-se, lucros cessantes), como as coberturas de ”doenças transmissíveis” e “impedimento de acesso por ordens se autoridades” tornam desnecessária a ocorrência de danos físicos aos bens dos segurados para que haja acionamento da Apólice. “Danos materiais, segundo o Codigo Civil, doutrina e jurisprudência pacíficas são compostos de danos emergentes e lucros cessantes. Logo, dano material não é igual a dano físico”, refuta. 

Mais do que isso, defende Mello, o conceito jurídico de dano compreende a impossibilidade de uso do bem de propriedade do segurado. Logo, o impedimento de acesso a um bem sobre o qual recai o interesse segurado é considerado dano material, segundo a lei brasileira. 

Segundo Mello, as coberturas examinadas no test case do FCA, notadamente a de impedimento de acesso por ordem de autoridades, têm sim comercialização relevante no Brasil, especialmente em grandes riscos, em apólices de Riscos Noemados e Operacionais. E, usualmente, essa cobertura prevê expressamente que não são necessários danos físicos à propriedade dos segurados para que os lucros cessantes sejam devidos.
“Portanto, o precedente serve como importante parâmetro interpretativo no Brasil”. 

Enfim, este debate ainda vai longe. 

Citações

[1] Foram examinados vinte e um clausulados emitidos por oito seguradoras (Arch, Argenta, Ecclesiastic, Hiscox, MS Amlin, QBE, Royal & Sun e Zurich). As coberturas que não exigem dano material (“non-damage covers”) e foram analisadas no FCA Test Case foram separadas em 3 categorias: “Disease Clauses”, “Prevention of Access Clauses” e “Hybrid Clauses” (esta última categoria inclui certos componentes das outras duas). 

[2] “The Claim concerns the issue of whether business interruption losses arising from the COVID-19 pandemic (‘COVID-19 business interruption claims’) are covered by certain insurance extensions or other coverage clauses that do not require damage to the insured’s property. […] The FCA, in consultation with the Defendants, other insurers, policyholders, brokers and other stakeholders has conducted a comprehensive review of the policy wordings for business interruption insurance that exist in the market. It has focussed not on policies that require physical or property damage but rather on those that have ‘non-damage’ covers or extensions. It has identified certain policies in relation to which it claims declaratory relief.” (FCA Amended Particulars of Claims – 26/06/2020 – p. 1 e 154) 

[3] “The Court is asked to construe a number of wordings which contain non-damage ‘extensions’ to the ‘standard’ Business Interruption (‘BI’) cover provided by the relevant insurers. That ‘standard’ cover is contingent on the occurrence of physical or material damage to the insured premises. There is no dispute before the Court about whether there is cover under such ‘standard’ BI cover.”   

[4] A carta “Dear CEO” de 15.04.2020 emitida pelo FCA afirma o seguinte: “Based on our conversations with the industry to date, our estimate is that most policies have basic cover, do not cover pandemics and therefore would have no obligation to pay out in relation to the Covid-19 pandemic. While this may be disappointing for the policyholder we see no reasonable grounds to intervene in such circumstances.”

Denise Bueno
Denise Buenohttp://www.sonhoseguro.com.br/
Denise Bueno sempre atuou na área de jornalismo econômico. Desde agosto de 2008 atua como jornalista freelancer, escrevendo matérias sobre finanças para cadernos especiais produzidos pelo jornal Valor Econômico, bem como para revistas como Época, Veja, Você S/A, Valor Financeiro, Valor 1000, Fiesp, ACSP, Revista de Seguros (CNSeg) entre outras publicações. É colunista do InfoMoney e do SindSeg-SP. Foi articulista da Revista Apólice. Escreveu artigos diariamente sobre seguros, resseguros, previdência e capitalização entre 1992 até agosto de 2008 para o jornal econômico Gazeta Mercantil. Recebeu, por 12 vezes, o prêmio de melhor jornalista de seguro em concursos diversos do setor e da grande mídia.

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